quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Em nome dos índios ou de Bolívar, Brasil corre risco de diminuir

Hugo Souza

(24/01/2008)


Em novembro do ano passado o exército da Venezuela destruiu duas dragas fluviais da Guiana que eram utilizadas para o garimpo do ouro na região da fronteira comum entre a República Bolivariana e a ex-colônia britânica. Houve mal-estar diplomático, e até hoje não se sabe ao certo se, no momento em que foram pelos ares, as dragas remexiam o fundo do rio Cuyuní, que fica em território guianense, ou as areias do rio Wenamú, que divide os dois países. Ninguém ficou ferido, mas o episódio chamou a atenção para a contenciosa tríplice fronteira entre Brasil, Venezuela e Guiana.


O incidente, no entanto, trouxe à tona apenas parte dos graves problemas que envolvem aquela área, como a velha reivindicação venezuelana de soberania sobre a região de Essequibo, que corresponde a dois terços do território da Guiana. Os jornais brasileiros, quando chegaram a repercutir o ocorrido, fizeram-no reportando os aspectos mais pitorescos que encontraram pela frente, como o fato de a Guiana ser o único país da América do Sul a ter o inglês como idioma oficial, ou a imagem de soldados venezuelanos pedindo chocolates, ao invés de propina, para deixar brasileiros abastecerem no posto de gasolina da PDVSA, a empresa estatal de petróleo da Venezuela. Inusitado, como é inusitado que no país de Hugo Chávez, até alguns anos atrás, era proibido passear de bermuda em uma praça erguida em homenagem a Simón Bolívar.


Não há dúvida: é grave o Brasil abandonar sua fronteira com outros dois países ao Deus dará, assim como é inadmissível que a última cidade brasileira antes da Venezuela não tenha um posto de gasolina sequer, sendo que o mais próximo fica a 220 km de distância, na capital do estado de Roraima, Boa Vista. Na verdade, o xis da questão é a ameaça à soberania de grande parte do que hoje ainda é um estado brasileiro chamado Roraima com uma capital chamada Boa Vista.


Mas, no compreensível afã de marcar posição contra Hugo Chávez e de denunciar a presença desproporcional de suas tropas a poucos metros do solo brasileiro, o xis da questão tem permanecido sob o tapete. E se é verdade que os objetivos de Chávez em relação à Guiana podem ter conseqüências para a soberania nacional, é menos provável que tenhamos um exército bolivariano marchando no Brasil do que a França ocupando o Oiapoque ou o Paraguai tomando conta de regiões do Mato Grosso, por incrível que pareça. Aos fatos.


Na disputa entre Venezuela e Guiana, pode sobrar para o Brasil


De 1895 até 1900, houve um litígio fronteiriço entre a França e o Brasil. O que ficou conhecido como o "Contestado Franco-Brasileiro" envolvia uma ampla região do que hoje é o estado do Amapá. A descoberta de ouro no rio Calçoene, em 1894, foi o motivo da invasão de franceses baseados na Guiana Francesa e da conseqüente matança de brasileiros que viviam na região.


O episódio fez surgir até mesmo um herói nacional da resistência: Francisco Xavier da Veiga Cabral, conhecido como "Cabralzinho", que rechaçou uma invasão comandada por um capitão francês chamado Lunier. Por ter defendido a então vila de Amapá, "Cabralzinho" foi consagrado herói nacional pelas Forças Armadas, que lhe deram o título de General Honorário do Exército Brasileiro.


A reação dos brasileiros, o massacre de amapaenses e a atuação diplomática do Barão do Rio Branco apressaram a resolução do conflito. Em 1º de dezembro de 1900, cinco anos depois do início dos embates, a Suíça foi incumbida de arbitrar a questão. O então presidente daquele país, Walter Hauser, deu laudo favorável ao Brasil. A França aceitou as determinações do chamado "Laudo Suíço".


O Brasil foi o vencedor da contenda diplomática, diferente do que aconteceu no caso do Essequibo, cuja decisão do "Laudo Arbitral de Paris" foi favorável a uma potência européia, a Inglaterra, em detrimento da Venezuela. Mas, no caso do Essequibo, a Venezuela nunca aceitou formalmente a perda desta área. O artigo 10 da atual Constituição venezuelana, a chamada "Constituição Bolivariana", declara que "o território e demais espaços geográficos da República são os que correspondiam à Capitania Geral da Venezuela antes da transformação política iniciada em 19 de abril de 1810, com as modificações resultantes de tratados e laudos arbitrais não viciados de nulidade".


Ou seja: para a Venezuela, constitucionalmente, o que lá se chama de "Guiana Essequiba" é por direito parte do seu território. Para muitos escolados em assuntos de fronteiras, soberania e que tais, caso Hugo Chávez comece a utilizar as armas de que dispõe para reaver a região de Essequibo à força, isto significará um precedente perigoso, pois poderia desencadear uma onda de revisões de tratados e decisões diplomáticas relativos à América Latina já acatados pela comunidade internacional.


O ex-presidente da República e senador José Sarney, por exemplo, acredita que isto acarretaria uma espécie de "balcanização da região", com a seguinte lógica: se Hugo Chávez tiver o direito de invadir a região de Essequibo, a França, por exemplo, poderia querer reaver parte do Amapá, ou os paraguaios poderiam querer de volta regiões do Mato Grosso que foram anexadas pelo Brasil nos espólios da Guerra do Paraguai.


Perigo real, mas não imediato


Ainda que a questão de Essequibo possa se transformar em uma ameaça para a soberania brasileira sobre parte de seu território, o risco não parece ser iminente. Segundo Carlos Alberto Borges da Silva, professor de relações sócio-ambientais da Universidade Estadual de Roraima, atualmente a Venezuela mostra outros interesses no campo diplomático, como assegurar posição política hegemônica na América Latina e confrontar-se ideologicamente com os Estados Unidos. Ele diz que, por conta disso, a disputa pela "Zona en Reclamación" parece ter ficado num plano secundário na agenda diplomática do governo venezuelano. Além disso, a política de Chávez não produziu muitos amigos no campo externo, e uma aventura militar na região do Rio Essequibo agravaria a situação da Venezuela no cenário internacional.


-No entanto -- ressalva Carlos Alberto -- ainda florescem na Venezuela grupos chamados de pró-essequibanos, cujo objetivo é empenhar-se pela recuperação da região de Essequibo através da divulgação de programas de rádio, visando a criação de uma cultura venezuelana na região.


E ressalvas parecem, de fato, ser bem-vindas, tendo em vista a intensa atividade militar venezuelana em suas fronteiras com Brasil e Guiana. No segundo semestre do ano passado, os índios Yanomami denunciaram que militares venezulanos vêm invadindo o espaço aéreo do Brasil e aterrissando em algumas comunidades do lado brasileiro da fronteira. As denúncias foram noticiadas pelo jornal Folha de Boa Vista, mas, apesar de se tratar da hipótese de uma grave ofensa à soberania nacional, não encontrou ressonância na imprensa do sul e do sudeste. A Funai e os índios informaram o Exército e a Polícia Federal, mas, até onde se sabe, não houve desdobramento maior no meio diplomático.


Nilder Costa, editor de um portal na internet sobre desenvolvimento, integração e infra-estrutura, o "Alerta em Rede", também não acredita que Chávez constitua um risco imediato:


-Chávez, por mais desatinado que seja, não representa uma ameaça militar ao Brasil, a curto ou médio prazo. Muito mais preocupante, do ponto de vista estratégico, foi o recente acordo do governo da Guiana com a Inglaterra para que este país gerencie as florestas guianenses.


Sob tal perspectiva, o indigenismo promovido há décadas na região por potências estrangeiras, sob o antigo lema de "dividir para conquistar", é uma clara ameaça à soberania nacional.


A 'grilagem' internacional feita em nome dos índios


Para Nilder Costa, na Amazônia, os territórios não são conquistados no sentido militar clássico, mas pela neutralização de seu desenvolvimento socio-econômico e de seu povoamento, para, em uma fase posterior, serem eventualmente declarados como territórios sem "soberania efetiva".


Foi o que aconteceu com a região do Pirara, a leste do estado de Roraima. Hoje, a área compõe o sul da Guiana, mas foi parte do território brasileiro até o início do século XX. A "Questão do Pirara" surgiu ainda no século XIX, quando a Inglaterra fomentou uma disputa fronteiriça com o Brasil, alegando que os índios que viviam na região reclamavam a proteção inglesa. O Brasil cedeu, e retirou do Pirara suas representações civis e o destacamento militar, reconhecendo provisoriamente a neutralidade do território indígena. Em 1842, no entanto, a Inglaterra colocou marcos fronteiriços na região, usurpando terras brasileiras para sua colônia, a Guiana. Finalmente, em 1904, o governo brasileiro aceitou o laudo arbitral da Itália, cujo parecer foi favorável à Inglaterra. O resultado da "grilagem" praticada sob o pretexto da proteção aos índios foi a perda de 19.630 km² do território nacional.


Hoje, algo semelhante vem acontecendo com a área da Raposa-Serra do Sol, em Roraima. Em 2005, sob pressão de Ongs indigenistas patrocinadas com dinheiro internacional, o então ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, assinou uma portaria autorizando e o presidente Lula decretou a retirada de toda a população não-índia desta região da extremidade norte de Roraima.


Diante da resistência do governo estadual e dos agricultores da Raposa-Serra do Sol, que são contra a retirada, a Ong CIR (Conselho Indigenista de Roraima) encaminhou à ONU na primeira quinzena de janeiro deste ano um documento pedindo que "sejam adotadas medidas específicas para proteger a integridade das comunidades indígenas da Raposa-Serra do Sol e o seu direito à terra". Para quem conhece a história e o desfecho da "Questão do Pirara", como Nilder Costa, a legitimidade aparente destas reivindicações pode não acabar bem.


-Penso que, do ponto de vista geopolítico e histórico, a enorme pressão de fora para a criação da reserva indígena Raposa-Serra do Sol pode ser considerada uma espécie de continuação do caso Pirara, por conter os mesmos ingredientes e motivações. Instalada de fato a reserva, não tenho dúvidas que o processo passaria para a fase seguinte, que seria a obtenção da plena "autonomia" indígena sobre o território e sobre o sub-solo da reserva.


Desinformação para despovoar


Para o historiador Said Barbosa Dib, a visão anti-civilizatória que permeia os discursos indigenistas é um claro instrumento ideológico que procura passar a idéia de que se deve despovoar a Amazônia. Segundo Said, este interesse pela Amazônia ficou evidente e ampliou as ameaças à soberania nacional depois do Projeto Radam, que foi um processo de documentação do relevo brasileiro feito na década de 1970 com base em imagens de radar.


-Este interesse tornou-se agressivo com o advento dos satélites, que constataram as potencialidades da região, que hoje é considerada a última e mais rica fronteira econômica do planeta. Logo, a Amazônia virou assunto na imprensa internacional. Nos últimos anos a região está no noticiário dos jornais e televisões do mundo inteiro. Há muito, um noticiário falso e mal intencionado vem projetando no mundo uma imagem distorcida e irreal da Amazônia, onde viveriam homens que destroem a natureza, matam índios e ofendem o ecossistema da maior reserva biótica do mundo.


A esta campanha de desinformação, diz Said, juntam-se entidades brasileiras quase sempre formadas com isenção fiscal concedida pelo governo e financiadas com dinheiro estrangeiro para falarem mal do Brasil.


-Uma campanha espúria cujo objetivo principal é claramente evitar o povoamento efetivo da Amazônia por brasileiros, deixando a região vazia, sem o incômodo de futuras resistências da sociedade civil brasileira às investidas estrangeiras.


As fragilidades estão por toda parte. Nas duas universidades públicas de Roraima, um estado com problemas fronteiriços tão flamejantes, ainda não existe nenhum grupo de pesquisa especificamente voltado para o estudo desta questão.


Quem tem contato um pouco mais profundo com Roraima relata que lá, muitas vezes, ainda se fala, de brincadeira, que "o Brasil" é mais desenvolvido do que lá. Mas a bandeira do estado não deixa dúvidas: o verde representando a mata; o amarelo, a riqueza mineral; o branco, a paz; o azul, o céu de Roraima.


Qualquer semelhança não é mera coincidência. A diferença fica por conta de uma linha vermelha que atravessa a parte de baixo da bandeira. Representa a linha do Equador, que corta o sul do estado. A linha imaginária está ali demarcando o Brasil do hemisfério norte, mas Brasil.

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