quinta-feira, 2 de outubro de 2008

A ORIGEM DO CÉU E DA TERRA

Bem antes que o assunto Raposa e Terra do Sol tomasse conta da mídia a respeito de sua demarcação, e chegasse à preocupação dos ministros do STF, escrevi o conto Origem do Céu e da Terra, que faz parte do meu livro Inverno Verde, publicado pela Editora Valer, de Manaus, em 2002. O conto é anterior a essa data. É apenas uma obra de ficção. Não sei se o "meu" índio macuxi-ingaricó com sua pepita de ouro, foi mais feliz que os atuais que compareceram com trajes típicos à sessão do STF. Mas o ouro existe, e está lá com muito outros minérios. As ongs sabem bem mais que os índios e arrozeiros. O conto segue abaixo. Quem se interessar pelo livro, enviarei por sedex (a cobrar, que não sou índio nem tenho ong) sem preço de capa. Abraços. Getúlio.


A ORIGEM DO CÉU E DA TERRA


Getúlio Alho - in Inverno Verde.


Uma vez um índio macuxi-ingaricó, depois de vender uma pepi­ta de ouro encontrada nas suas terras, na Serra do Sol, ficou rico e foi passear em Manaus. A Serra do Sol fica no alto rio Branco, pra lá de Malacacheta, já beirando as águas do Maú que limita o Brasil com o lado inglês.


Depois de providenciar o registro da lavra em nome de sua família, saiu pela cidade à procura de presentes para levar de lem­branças. Andou, andou, olhou vitrinas, viu exposições, experimentou roupas, testou eletrodomésticos. Nada o satisfez. Como já era noite, recolheu-se a um hotel, jantou e foi dormir. Minto, não dormiu. Tão logo se deitou bateram à porta. Era o camareiro que fora dar explicações a respeito do funcionamento das torneiras, das luzes, do ar condicionado, do vídeo, da TV e do computador.


De pronto, o que pa­recia um quarto solitário, encheu-se de som e imagens vindas de uma grande tela que se abriu na parede fronteira à cama. Sobre a mesinha de cabeceira, junto à bíblia, havia um pequeno teclado; por ele, podia chamar a programação normal de TV, ver filmes (aventura, sexo, ficção, comédia, drama, informou o rapaz), jogar xadrez ou damas contra o com­putador (ou um dos cento e tantos outros jogos, inclusive o come-come), pedir qualquer serviço do hotel e ver a lista viva das moças-de-companhia (ou rapazes, se preferisse). O camareiro mostrou algumas delas, que se chamavam Mary, Meg, Moema, Ninja, Nina, assim, em ordem alfabética, morenas, loiras, negras e até índias. Se não quisesse nada daquilo, podia desenhar, usando o próprio dedo sobre uma lousa, na parte debaixo do teclado.


Depois que o camareiro saiu, o índio macuxi-ingaricó tomou um banho de espuma e se deitou. Pegou o teclado e se pôs a brincar experimentando as teclas; uma mostrava a portaria, outra o restauran­te, e o bar, a piscina, a lavanderia. Depois viu noticiários. Resolveu olhar a lista das moças, desde o começo. Uma a uma elas apareciam, di­ziam o nome e faziam poses; demoravam-se ou saíam rápidas, conforme ele próprio comandasse. Uma - uma morena - nada disse, olhou-o simplesmente, um olhar suave. Apertou o s de sim, a imagem sumiu, reaparecen­do depois em mil fragmentos, que se juntaram, para em seguida formar o rosto da escolhida. O computador pediu confirmação. Teclou o s de novo.


Quando ela entrou, ele via a paisagem de um campo verde e florido onde pastavam cavalos brancos, e por onde passavam veados, coe­lhos e garças. Deslocando a imagem para a direita, apareciam casca­tas, rios correndo tranqüilos entre pedras, e onde, de vez em quando, tombavam lentas, folhas doiradas. São plátanos, ela disse, já despida ao seu lado: tomou-lhe das mãos o teclado e, com habilidade, fez com que a luz do quarto fosse morrendo aos poucos, à medida que o sol se pu­nha no horizonte. Ouviu cantos de pássaros, murmulho de água correndo, uma voz que murmurava uma canção, ao mesmo tempo que miríades de estrelas apareciam no céu. Quando o sol se pôs de todo, luzes se acenderam em inumeráveis cores e formas, transformando o quarto num calidoscópio assimétrico. As cores estavam em suas mãos, em seus corpos, e eram eles as próprias cores vagando pelo imponderável quadrimensional. O índio macuxi-ingaricó sentiu-se muito feliz.


Despertou pela manhã no seu horário habitual, tomou café e saiu. Numa loja de computadores, um chamou-lhe a atenção por ter o teclado igual ao aparelho do hotel. Entrou, pediu explicações e demonstração, e satisfeito, comprou-o, junto com um vídeo de cristal líquido e uma antena parabólica. Pensou na alegria da família e nem almoçou para não perder tempo. Pegou um taxi; no aeroporto um avião, e foi para Boa Vista, onde alugou um táxi-aéreo que o levou até ao campo de pouso de Genérica, já nas margens do Maú. Ali, esperava-o o irmão, com uma canoa na qual subiram o rio. O irmão, curioso, queria saber do conteúdo das caixas, o porquê de tanto sorriso. E mais ele sorria, re­mando, remando, vencendo a correnteza, subindo corredeiras, atraves­sando estirões, furando igarapés.


Tendo varado o dia, encostaram numa praia. Deitaram-se na areia e ficaram quietos olhando o céu escurecer. Ele disse ao irmão, lembra-te que os velhos contavam a história do nosso povo e de como tinham recebido a terra e o céu? Lembro, o irmão respondeu. Lembra-te de como os perdemos? Lembro, foram os brancos, não foi? que vieram com armas e levaram as raízes sagradas e inebrian­tes. Foi. Que é que tem? Pois é, consegui tudo de volta. Conseguiste o que? Nossas origens, o universo. E como? recuperaste as raízes? Não; trouxe um computador. Máquina de branco, igual das mineradoras? Não, é diferente; é uma outra que eles fizeram para devolver tudo que tomaram da gente. Abre, eu quero vê-la. Não, só depois de ligá-la, ela não funciona sozinha. Abre, vá, quero ver. Deixa de ser curioso, queres que o céu se perca aqui? não te esqueças da origem da noite; não, só vamos abri-las quando chegarmos em casa. O irmão se aquietou e como era obediente, nem chegou perto das caixas.


No dia seguinte continuaram a viagem até a aldeia, sendo re­cebidos com festas. No terreiro, ergueram uma nova e grande casa, onde foi instalado o computador. Usaram-no para controlar a produção de ou­ro, as finanças e, sobretudo, para guardar os mitos da tribo. Foi as­sim que os índios macuxi-ingaricó tiveram de volta a terra e o céu.


Versão: 3 de junho de 1992, 18:15

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